Capítulo 15 - A pergunta

Fui acordada às 10 horas, com um ruído de pratos e talheres.

- Veja, mãe. O café veio servido junto com as rosas. E de dentro do armário.
 
O cheirinho de café fresco invadiu todo o chalé e tornou-se irresistível. Comemos em silêncio. Os pensamentos estavam divididos entre o que nos esperava naquele dia e o que havia passado nos dias anteriores. Priti já estava arrumada e usava o Murano que ganhara de presente. Aliás, o quase meu Murano!

Comemos rápido e logo ouviu-se um bater na porta. Era a Rafa. […]
 
- Hoje estou mais à vontade. Ficar muito arrumada às vezes dá muito trabalho. […]
- Sua irmã já chegou?
- Ainda não. Chega só na hora do almoço. Hoje o dia é só de distração. Programei uma atividade com os adultos e as crianças. E vim buscar vocês. Será no pátio da escola.
- E quem vai?
- Não se preocupe, Priti, que o Sid já está lá!
 
Dessa vez fomos num carro comum e a Rafa é que dirigia. O local era perto, mas eu não aguentaria andar até lá. Encontramos uma grande festa armada e as crianças se esbaldavam. Várias mangueiras, ligadas a torneiras, refrescavam as crianças do calor que as brincadeiras e o dia quente causavam.
 
- São meus alunos.

Sem saber por onde começar, procurei uma sombra onde já estavam instalados os pais do Gui. Rafa iniciou as brincadeiras com as crianças e com alguns os adultos. Uma verdadeira festa de criança.

- Oi, minha filha! O vestido fez sucesso?
- A senhora nem imagina a felicidade que causou a ela. Eu nem tenho palavras!
- Não precisa agradecer. Meu filho sempre gostou muito de você e estamos aqui para isso mesmo.

Nesse momento, Guido chega […]

- Então? Já está instalada? Deixe-me apresentar: essa é a Fê. A irmã da Rafa!
- Já estava muito curiosa em conhecê-la. Sua irmã e o Guido falaram muito de você.
- E eu então nem se fala! Há anos que escuto falar de você. E moramos até que perto; você na Índia e eu no Japão.
- Mana!!! – era a Rafa vindo correndo em nossa direção. As irmãs abraçaram-se e beijaram-se - Vem brincar um pouco!
- Bom, com licença que...

Não houve tempo nem de falar direito, pois a Rafa já puxava a irmã na direção das crianças e, de cara, pegou uma das várias mangueiras e molhou a irmã dos pés à cabeça. Descobri porque o brilho nos olhos da Fê era familiar; ela e a irmã se completavam e brilhavam de um jeito igual.

- Elas se divertem muito. Mas o trabalho é sério.
- Trabalho? - perguntei curiosa.
- Lembra que eu falei pra você que as crianças eram observadas em suas aptidões? A Fê orienta toda a equipe de psicologia daqui, baseada nas observações da Rafa em suas aulas de educação física e nas brincadeiras. Os jogos, os desenhos das crianças e tudo o mais, revelam coisas incríveis, além de tudo ser muito divertido. Uma vez por mês ela vem aqui para avaliar e deixar as suas diretrizes. E brincar com a irmã também, é claro. Além de vir ver este velho, aqui!

O almoço foi servido ao ar livre e foi a base de verão. Frutas, refrescos, carnes frias animais e vegetais e tudo o mais. Em dado momento, chega um mensageiro procurando pelo Gui.

- Terei que me ausentar um pouco, pois chegou uma pergunta completamente diferente das outras. Ainda bem que a Fê está aqui, pois essa parece ser mais complicada. Nos encontraremos à noite e terei uma surpresa para você. Se voltar cedo, termine o CD. Aproveitei e fiz uma atualização com as coisas que já se passaram por aqui e acho que você vai gostar.

Continuei no almoço até perto das 17 horas, quando pedi para o Sr. Holland me dar uma carona. Desta vez não era um calhambeque típico e sim uma esportiva baratinha dos anos 50.

- O modelo original só tinha lugar para o motorista, mas fiz uma adaptação para ser possível levar mais alguém. Andar de carro sozinho não tem graça, né? - disse com um sorriso e usando o “né” que parecia tão típico quanto os elevadores dos armários.

Chegamos rápido e fui para o chalé, exausta. Deixei Priti na diversão, não sem antes dar as recomendações de praxe. Ela voltaria depois com a Rafa, o Sid e a Fê. Fui olhar o computador e o CD com a atualização. Uma gracinha. Guido colocou fotos do curto período em que estávamos em Ribeirão. E havia outro arquivo “Leia-me” só que com o número 2.

“ Estranhei uma observação sua a respeito de um cancelamento de contato vindo da minha parte e resolvi apurar. Veja o meu último e-mail para você.”

A data era de 5/1/2000 e pedia que eu mandasse notícias. E ele prosseguiu.

“A partir daí, não tive mais notícias suas até a carta de seu pai, quase me culpando pela sua permanência na Índia. Algo aconteceu e logo irei descobrir.”

Que mistério! A história que ele contava era bem diferente do que eu soube na época. Tinha certeza de que ele é que parara de escrever.
 
Tomei um banho e fui procurá-lo. Encontrei-o na varanda, que dava na cozinha, sentado na imensa cadeira de balanço.

- Chegue perto. Adoro cadeiras de balanço. E agora está bastante silêncio. Ouça as cigarras. Cantam durante toda a vida, que é extremamente curta, mas certamente feliz.
- Li o arquivo.
- Pois é. Foi o que aconteceu. Alguém boicotou nossa correspondência. Muitas coisas começam a ficar claras.
- Como assim?
- Além do seu sumiço, sempre fiquei intrigado com o pedido da mãe do Sid.
- De você cuidar dele?
- Exato. Por que ela não queria que ele ficasse com os avós, como seria muito natural?
- E o que isso tem a ver com a gente?
- O avô dele era um perito em informática. E era conhecido de seu pai.
- O que você quer dizer?
- Ele interceptou nossa correspondência. Nem seu pai soube disso. A mãe de Sid deixou um presente para mim, para que eu abrisse hoje, dia 19/12/2020. Leia.

E me entregou uma carta em um papel amarelado, escrita a mão com uma letra muito bonita.
 
“Querido Guido!

Você sempre soube que o maior motivo da minha dificuldade de adaptação às pessoas vinha do meu culto às coisas esotéricas. Todos me achavam muito estranha e eu me relacionava muito mal com as pessoas. Até que, um dia, eu descobri o dia da minha morte. Veio num sonho e minha vida mudou. Parei de ter medo da vida e das pessoas. Nada me fazia mal.

Pude largar a terapia e os remédios e viver um amor intenso, mesmo sabendo que seria por pouco tempo. Quando começamos a conversar pelo computador, acabei descobrindo seu nome nos arquivos do papai e vi que ele tinha uma série de e-mails seus para uma menina de nome Bela e dela para você. Fui pesquisar mais e descobri um lado muito ruim de meu pai. Ele queria crescer na vida, não pela habilidade na computação e sim por tráfico de interesses. Sim, meu amigo. Ele conheceu o pai da Bela em uma reunião de um clube numa cidade próxima da nossa e soube da encrenca da sua visita. Resolveu, por conta própria, interferir no destino de vocês e, quando tudo estivesse resolvido, falaria para o pai dela. Pensava que ia fazer o maior sucesso e que conseguiria favores em troca. Mas o destino foi justo, pois Bela foi para a Índia, não retornou, o pai dela culpou a informática e não quis mais saber de nada relacionado a isso. Meu pai não conseguiu nenhum favor. Eu fiquei muito decepcionada com ele e jamais o deixaria cuidar do meu filho. Hoje ele deve estar com 15 anos e muito feliz, pois está em muito boas mãos. E Bela deve estar aí na varanda, a varanda que só conheci nos meus sonhos. Entregue o presente para ela. Peça para ela guardar bem junto ao coração que nada, nunca mais, conseguirá deixá-la triste outra vez.

Um beijinho

Elle”


Eu chorava, chorava e chorava como uma criança recém nascida. Guido permanecia mudo. Me abraçou e me entregou um cordão prateado com um pedantife com um cristal lapidado de um lado, com as facetas irregulares, e do outro o aspecto bruto da pedra, que era de um brilho azulado mágico, assim como ele sempre foi na minha vida. A coisa mais linda que eu já vi.

- Ela previra tudo. Tinha 17 anos quando eu a conheci e morreu com 20.

Me ajoelhei perto da cadeira de balanço e deitei a cabeça no colo dele. Segurava o presente com força perto do coração. Ele balançava a cadeira, como que querendo me ninar. Meu avô fazia isso também.

- Era essa a surpresa. O presente. Só que a revelação também fazia parte. Agora você pode deixar o passado pra lá. E seguir sua vida sem medos e sem receio de mais nada.
- Mas - soluçava - isso é muito injusto.
- Várias coisas na vida parecem injustas mas, um dia, a felicidade e o amor vencem.

Neste momento, ouvimos uma cantoria. Eram as crianças com a Rafa e a Fê. Tentei me recompor, mas foi complicado disfarçar.

- Mãe, o que houve?

Com extrema habilidade, típica de uma boa psicóloga, a Fê desconversou, a Rafa mandou o Sid pegar um violão e eu pude voltar ao normal.

- Que presente lindo que você ganhou! O Guido nunca me deu nada parecido – rindo, a Fê simulava um ataque de ciúmes, com as mãos na cadeira.
- Nem que eu quisesse. Quem fez o presente não fui eu! – disse Guido completando o clima.
- Mãe, é tão bonito quanto o Murano.
- É sim. Agora ambas ganhamos presente – falei, já recomposta.
- E é hora de continuar a brincadeira.
- Rafa só pensa em brincar. E faremos o quê?
- Cantar. O Sid é músico.
- Músico? – Priti não tinha mais onde esconder a admiração pelo seu novo amigo.

E lá veio ele, tocando o violão. A voz era forte, afinadíssima e os acordes eram perfeitos. Aquele menino que pouco falava comigo e que eu achava meio quieto, mostrou-se animadíssimo e desembaraçado atrás daquele violão de 12 cordas. Tocou de tudo. De clássicos à música moderna, passando pelas velhas sertanejas, que fizeram o maior sucesso. Depois vim a saber que o Sr. Holland é que era seu professor. E claro que todos dançaram muito e a chateação acabou. Fomos servidos com um lanche e a função toda acabou à meia noite, com muitas gargalhadas e estórias engraçadas. 
 
 
Eu sou doc

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