Capítulo 14 - O Dom

Rafa era muito animada. Adorava dançar e me levou para o meio da roda onde Sid e Pri já se divertiam há muito tempo. Guido preferiu não dançar, mas observava à distância enquanto saboreava o delicioso vinho e conversava animadamente com o pai da noiva que, depois vim a saber, era o responsável pela seção Itália do Universo teen. Apesar de muito simpático, Guido mantinha aquela expressão algo tensa, algo reprimida. Seria triste, lá no fundo? Até que, em dado momento, se dirigiu até nós e foi recolher-se. Já eram quase 2 da manhã e a festa não parecia ter hora para acabar.

- Fiquem por aqui. Depois Sid leva vocês de elevador. Rafinha, fique lá em casa também. Sua irmã chega de manhã, possivelmente, com seus sobrinhos. É sábado e só o plantão funcionará. 
- Ah! Já vai? Assim você fica velho mais cedo! – disparou a Rafa, como já era seu costume.
- Mas já estou velho há muito tempo, vocês é que não querem admitir.
- Velho com cabeça de novo não é velho – disse eu.
- Ahhahahahahahah. Mas vou assim mesmo. Ainda tenho que arrumar algumas coisas.
- Estamos atrapalhando seu trabalho, né? – lá venho eu com o “né”.
- De forma alguma, mas não posso deixar de dar os meus palpites lá na tecnologia. E sempre chega alguma pergunta mais difícil.

Nos despedimos. As danças pararam um pouco para o jantar, que era um imenso buffet de comidas italianas. As crianças se juntaram a uma turminha da mesma idade, que também viera para passar o final de semana. Eu fiquei com a Rafa.
 
- Como é ser escritora?
- Depende de muitas coisas. Um pouco de boa inspiração, sorte de achar um bom editor e mais sorte ainda de achar pessoas que gostem do que se escreve.
- Seus livros são ótimos. O seu primeiro, eu li quando tinha 12 anos. Falava de AMOR de uma forma desconhecida para mim na época.
- Era quase um diário. Boa parte do que estava no livro, eu vivi. A outra eu gostaria de ter vivido. Mas não tenho do que reclamar. Casei com um príncipe da minha juventude que eu achava que era um sapo.
- O SAPO do livro?
- O próprio. E você? Como é ser professora de Educação Física?
- É a minha vida. Passar o conhecimento do corpo para as crianças. Corpo são, mente sã, não é assim? Você alimenta a alma e eu cuido do corpo!
- É verdade! E esse é o seu Dom?
(risos, porém bem simpáticos)
- Dom? Acho que sim, por que pergunta?
- Porque o Guido disse que você tinha um Dom, era especial.
- Ah! É isso. Então ele te contou.
- Contou nada, me enrolou. Por isso estou perguntando.
- E o que você acha que é o Dom?
- Penso que é uma coisa especial de cada pessoa. Algo diferente, que surge e que se desenvolve. No seu caso eu entendi que era a ginástica, mas ele falou que você prevê o futuro.
- Eventualmente fazia isso.
- Então esse é que é o Dom.
- Não necessariamente. O Dom todos ganhamos ao nascer, de acordo com as necessidades. E ele surge, ou não, dependendo do que acontece. Eu fui filha mais nova e “temporona”. Minha irmã já tinha 9 anos quando eu nasci, e minha mãe já nem esperava mais ter outro filho. Mas eu quis vir de qualquer jeito.
- Você quis vir?
- Acredito que as crianças vêm de algum lugar e que nascem porque querem. Só que, para sobreviverem ao mundo, têm que possuir algo a mais, e isso é o Dom.
- E o seu era a premonição?
- Não. Era a vontade de viver e ser professora de Educação Física. As coisas que eu previ, serviram para que eu conseguisse superar algumas dificuldades. Imagina uma menina de 9 anos, magrela, de óculos e com aparelho nos dentes; além do mais canhota e com uma irmã bonitona e universitária. Alguma coisa em mim tinha que ser diferente para que eu conseguisse atenção e superasse essa situação passageira. Agora não sou mais a menina magrela de óculos, sou a Rafa, uma menininha ainda, mas que se fez notar...
- E você é muito bonita!
- Obrigada. O seu Dom foi a inteligência e a coragem de prosseguir com seus sonhos. E junto disso a habilidade de escrever. E um enorme coração.
- Bondade sua, mas começo a entender.
- Muitas coisas mostram o Dom. No século 20, havia uma comunidade de pintores sem mãos, que pintavam com a boca e com os pés. Havia uma garota com uma doença muscular, que vivia ligada a aparelhos e que se comunicava com o mundo através de movimentos da face e um computador. E pintava também. O próprio ator que fez o Superman no cinema, lembra dele? O Dom dele era a vontade de viver.
- O Dom do Gui é lidar com as crianças.
- Exato. E ensinar também. […] O único problema é que, às vezes, a sociedade trata o Dom como uma coisa sobrenatural ou impossível de ser alcançada e as crianças não tem espaço para se desenvolver. São sufocadas e são criados os traumas que minha irmã, que é psicóloga infantil, acaba tendo que tratar.
- E o Dom dela é a psicologia, o entendimento.
- E ela também conta de crianças, cujos pais não esperam o dom surgir naturalmente e colocam os filhos em aulas de natação, línguas estrangeiras, matemática e esquecem de deixar os filhos brincarem. Através dos brinquedos elas encontraram o seu próprio Dom. Minha irmã já colocou isso em livro.
- Ela também escreve?
- E por sinal, muito bem. É poetisa nas horas vagas e usa suas poesias na transmissão das suas ideias.
- Você gosta muito dela, né?
- Você fala que nem ele – ambas rimos - Ela é meu modelo.
- E você salvou a vida dela.
- O AMOR salvou.
 
Já eram 3:30 da manhã e os convidados mais velhos já começavam a se retirar. Chamei os meninos que, muito a contragosto mas obedientes, concordaram que era hora de ir. Rafa iria com a gente. No final do salão, outro armário tipo cristaleira onde, aberta a porta, encontramos outro elevador que dava direto nos fundos do nosso chalé (obviamente dentro de outro armário!).

Priti estava nitidamente exausta mas feliz, como eu nunca tinha visto antes. Sid também demonstrava sinais de cansaço. Nos despedimos de Rafa e Sid, que se dirigiram para a casa grande. Até pensei que Priti iria pedir mais cinco minutinhos de papo com o menino, mas deu-lhe um beijo no rosto, entrou no chalé e caiu na cama de roupa e tudo. E eu fiz o mesmo roteiro.
 
 Eu sou doc

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