Capítulo 7 - As crianças

Pela manhã, o ruído de um galo cantando e uma barulheira de crianças. Parecia até um jardim de infância...

- Mãeeeeee! Que barulheira é essa de madrugada? Eu quero dormir!!!
- Acorda, filha, que na roça a gente acorda cedo.

Mal a gente se levantou, abriu-se a porta de um armário e lá de dentro saíram rosas perfumadas, das mais lindas que eu já vi. Junto com elas um bilhete e instruções:

“- O café será servido na sala, com as crianças”.

Trocamos rápido de roupa e nos dirigimos à casa grande, onde havia uma mesa de café da manhã com todas as frutas possíveis de se imaginar e um monte de crianças – bagunceiras, com certeza – em uma ordem impecável ao servir. As idades pareciam variar de 4 a 7 anos e quem coordenava, quem diria, era um menino de seus 15/16 anos, alto, cabelos pretos e longos, presos por um elástico atrás.

- Bom dia! - disse o menino – bem-vindas ao nosso café da manhã! Crianças, digam bom dia!
- Boooooommmmmm diaaaaaaaaaaaaa! - e caíram na risada
- Bom dia também! – saudamos e fomos nos servir.

As frutas, o leite e o café estavam deliciosos. E os bolos? Sensacionais! Havia ainda a alternativa de leite vegetal, pois na Índia as crianças eram ensinadas a ser vegetarianas. Priti não parava de comer – adolescente sempre tem fome – e a curiosidade estava me matando. Afinal, o que era aquilo? Em dado momento, com todas as crianças sentadas e se servindo, comecei a reparar que falavam em várias línguas. Ouvia-se francês, inglês, espanhol, chinês, russo, português e todas se entendiam sem problemas.

- Posso sentar com vocês? – perguntou o menino para Priti.
- Pooode... né? - respondeu meio sem graça.

O menino tinha um ar sóbrio e olhar penetrante, apesar da pouca idade. Priti ficou com uma expressão de estar pensando algo como: “- De onde saiu esse moreno de quase 1.80 m, de olhos azuis e cabelo liso escorrido na altura dos ombros, corpo atlético? Um deus aqui nesse fim de mundo?”

- Como é seu nome? O que é tudo isso? - perguntei
- Me chamam de Sid! Essas crianças são os filhos dos funcionários que trabalham aqui. O Edu comprou as casas de um bairro inteiro da cidade, que começou a ficar meio abandonado, porque os antigos moradores desistiram daqui e foram embora. Aos poucos, foi instalando gente de todo o mundo e ao todo são quase mil pessoas contando com as crianças.
- Mas só vejo crianças pequenas. E as maiores?
- À medida que crescem, elas voltam para os seus países de origem e se tornam multiplicadores de ideias. Os menores ficam aqui, aprendendo tudo de seus países e de outros. Dessa forma, não sentem muito a diferença cultural.
- E como funciona? - perguntou Priti, não sabia eu se interessada no assunto ou no menino!
- Não importa aonde nasçam, no Brasil ou no exterior, a origem dos pais é mantida. A diferença é que vão aprendendo um pouco de tudo, mantendo os próprios costumes, porém respeitando os hábitos do país de origem das outras crianças.
- Mas não fica a maior confusão? – perguntou Priti, cada vez mais interessada.
- No início; mas agora já ficou mais fácil.
- E você? Quem são seus pais? Você mora aqui?
- Meus pais morreram quando eu nasci. E eu moro aqui mesmo.
- Ah! Desculpe...
- Sem problemas. Apesar de nunca tê-los conhecido, recebi um CD, que minha mãe gravou durante a gravidez, me explicando uma série de coisas que ela queria que eu fizesse e os seus pensamentos....
- Ah! Pelo visto vocês já se conheceram – Guido chega com ar de satisfação, se dirigindo para mim – esse é meu maior assistente!
- Um menino muito inteligente - comentei – mas assistente, assim, tão novinho?
- Só de idade e está comigo desde que nasceu. Eu vim para cá há 10 anos e morava na casa dos meus pais que fica lá em baixo. Antes morávamos no Rio mesmo, mas eu vinha sempre nos feriados. A mãe era uma antiga leitora. Era uma figura um pouco diferente das outras, mas que se tornou muito especial pra mim.
- Diferente?
- Ela quase não saía de casa, não tinha namorados e amigos. Seus pais tinham um poder aquisitivo alto e ela estudava em casa. Mas seus interesses estavam na magia e outras coisas esotéricas. Fizemos amizade pela Internet e acabei conseguindo convencê-la a seguir outro caminho. A vida social dela melhorou, passou a se relacionar melhor com as pessoas e continuou seus estudos místicos, sem problemas. Conversávamos muito por telefone, e-mails, cartas via correio e isso criou uma aproximação muito grande da gente.
- E vocês chegaram a se conhecer pessoalmente?
- Com certeza! Eu fui padrinho de casamento dela. Aliás, ela casou com um residente meu, que eu apresentei. Nos tornamos muito amigos mesmo. Ela conheceu esse menino, com quem ela se casou, numa dessas vindas ao Rio.
- E ela vinha aqui também?
- Ela ainda não conhecia Ribeirão! Aproveitou um feriado prolongado e veio pra cá com o marido. Era oito de abril, o dia do nascimento do Sid. Na viagem, porém, o marido tentou desviar de uma criança que atravessara a estrada distraída e o carro, desgovernado, capotou. Foram levados para o hospital, porém não resistiram muito tempo aos ferimentos, apesar dos esforços da equipe médica. Como era nítido que estava grávida, foi feita uma cesariana de emergência, que deu origem a um bebê prematuro. Fui chamado para dar a assistência ao bebê, porque aqui, a estrutura era meio antiga, e ele sobreviveu.
- Mas como ele foi morar com você? Não deveria ter ficado com os avós?
- Nossa relação era muito estreita. Havia um documento registrando esse desejo dela, caso viesse a falecer. O marido não tinha pais vivos e os pais dela tiveram que aceitar. Claro que houve uma certa, digamos, indisposição.
- Aí, você ganhou um filho mais novo!
- Levei-o para casa com 3 meses de vida. Acho que ela sabia de alguma coisa que nunca contou pra ninguém...

A essa altura da conversa é que noto que Priti já havia pulado da mesa e estava sentada no muro da varanda conversando, ou melhor, babando o menino Sid, que não parava de falar...

- Pri...- ela nem ouviu – Pri...
- Deixe. Sendo ela sua filha, tenho certeza de que é bem esperta! E o garoto também precisa conhecer alguém de fora das relações dele.
- É mas...
- É... mas mãe é mãe, só muda o endereço...ahahahahahaha
- Às vezes é difícil saber dosar...
- Venha, vamos tomar mais um refresco, enquanto eles conversam.
- E toda essa estrutura? Há quanto tempo existe?
- Essa estrutura só tem 5 anos; antes eu fazia tudo quase sozinho em casa mesmo e fui ensinando aos poucos para ele. Hoje ele me ajuda nas férias, pois estuda no Rio, vai e volta todo o dia mas, como chega à noite, trabalha pouco.
- Foi difícil?
- Sempre é difícil. De repente surge um bebê de 3 meses na sua vida, para cuidar, e muita coisa tem que ser resolvida. Mas os meus filhos já estavam crescidos, o menor tinha acabado de ganhar a bolsa de estudos nos EUA e o maior já desenvolvendo seu projeto.
- Deve ter sido a maior barra pesada, né?
- Sem dúvida, mas deu certo com certeza!
- E no que você trabalhava na época?
- Eu ainda ficava nos hospitais, para não desatualizar. E na HP o trabalho só ia aumentando. Nessa época, eu comecei a receber muitas perguntas de adolescentes grávidas e resolvi tentar resgatar o instinto. Afinal eu tinha comigo um recém nascido sem mãe!
- Como assim resgatar o instinto?
- Simples, apesar de parecer complexo. Em algum momento da história do homem, possivelmente, criou-se o conceito de que o leite materno não era bom e as crianças eram afastadas da mãe nesse momento de grande ternura. Surgiram amas de leite e o uso do leite de vaca generalizou-se e industrializou-se. Provavelmente, isso foi devido à observação de que as crianças, cujas mães estavam realmente impossibilitadas de amamentar, e que eram amamentadas por outras mães, eram crianças tão fortes e tão sadias quanto aquelas que eram amamentadas pela própria. E, em alguns casos, às vezes, aparentemente mais fortes que seus irmãos. Dessa forma, teria surgido o conceito de leite fraco. Associou-se a isso o fato de que a mulher virou força de trabalho e não podia amamentar mais do que 3 ou 4 meses, pois era a época que terminava a licença de gravidez. Nos anos 1990 e até um pouco antes, tentou-se resgatar esse momento e houve um grande sucesso. E, junto com esse processo, conseguiu-se aproximar o bebe de sua mãe e o instinto retornou gradativamente. Só que, para tal, precisamos começar o treinamento a partir da infância, com maior ênfase na adolescência, tanto para as meninas quanto para os meninos. E as informações, eu passava nas respostas. Algumas aproveitaram, outras não.

Nesse momento, os dois se aproximam e noto que Priti ganhara uma rosa.

- Para os meninos? Como assim? Quem amamenta é a mulher, isso eu já tenho muita certeza na minha cabeça...
- Sim, mocinha; a educação dos meninos teve que mudar pois, durante a amamentação, a mulher passa a maior parte do tempo com seu bebê e o homem tem que ter paciência para esperar a sua vez. E lembre-se do que eu disse: a mulher teve sua liberação, mas a educação do homem mudou muito pouco nesse período.
- É... Mudar até que mudou... Mas ainda encontro muito machãozinho por aí - disse Priti catucando a barriga de Sid.
- Ahahahahahahahaha... Crianças, sempre tudo igual. Igual a sua mãe...
- Eu??? Ai de mim se eu falasse que nem ela...
- Ahahahahaha... Você era esperta, corajosa e curiosa... Parecia Sofia.
- A do livro que você deu pra minha mãe? O Mundo de Sofia?
- A própria! O livro era muito bom, pois ensinava filosofia durante um roteiro cheio de mistérios. Você lembra de Kierkegaard, um dos filósofos que o livro falava?
- Página 397! Alice no País das Maravilhas!
- Ah! Pelo visto, a menina gostou do livro. Mas a cena de Alice era um dos mistérios que o livro tinha para exemplificar.
- Mas o que tem Kierkegaard? - perguntei.
- Ele escreveu: “Quando chega o tempo do desmame, a mãe fica triste, pensando que ela e o filho irão se separar; que o menino, a princípio sob o seu coração e depois embalado no seio, nunca mais se encontrará tão perto dela. E juntos sofrerão esta curta pena. Feliz aquele que conservou o filho tão perto do seu coração e não teve outro motivo de desgosto”.
- Essa referência eu não conhecia!
- Aos poucos você vai aprendendo. No trabalho da sua mãe, a filosofia sempre está presente e ela, como escritora, sempre gostou de filosofia
- E essas crianças? Tem bebês por aqui? - perguntei
- Ficam com as mães até serem capazes de desmame; as mães trabalham em casa, na hora que eles dormem. Com a tecnologia isso é possível. Esses, que ficam com a gente durante o dia, são da pré-escola. Quando chegam na idade escolar, vão para a escola comum, que também segue a nossa linha. O Município entrou com o prédio e o material e os recursos humanos são patrocinados pelo Universo teen.
- E o que é diferente? - perguntou Priti
- Pouca coisa, só a filosofia. Eles aprendem realmente o que interessa a eles. É mantido o básico e observam-se as aptidões. Se a criança quer aprender música, isso é ensinado. Se gosta de matemática, investe-se nesta linha e por aí vai... Mas, apesar disso, adolescente é tudo igual.
- Dona Bela, com licença!
- Mãe, o Sid quer me levar para conhecer a cidade - e de charrete - posso?
- Não sei...
- Fique tranquila... a cidade é calma e o cavalo é bem manso. E Sid manobra bem a charrete.
- Então vá, mas não demorem...
- Voltaremos para o almoço.
“- Almoço? - pensei - depois desse café da manhã?”


Eu sou doc


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