Capítulo 6 - As lembranças

O jantar foi servido na varanda mesmo. A noite era de lua cheia e, apesar do verão, a temperatura era bem amena e agradável. A comida era bem simples: frango ao molho pardo, doce de leite de sobremesa e, como opcional, hambúrguer, naturalmente de carne vegetal, com batatas fritas. Priti não quis o frango e deliciou-se mesmo com o hambúrguer...

- Isso também não mudou - os jovens e os sanduíches!
- Principalmente agora, que conseguiram retirar todos os conservantes e fizeram algo mais sadio. E você não me disse ainda como conseguiu tudo isso. Na época em que a gente se correspondia você estava com dificuldades financeiras...
- Dava pra viver... Mas aí surgiu o Edu, que me convidou para responder às perguntas sobre Saúde na HP dele.
- Até aí eu sei...
- Pois é! A coisa foi crescendo e a HP virou um sucesso mundial, traduzido em vários idiomas. A partir de 2000, quando ele foi morar na Europa e passou a controlar o site de lá, ele me contratou. Mandou-me um computador novo e eu passava boa parte do tempo só fazendo isso. Os filhos cresceram; o mais velho formou-se em ecologia e vive viajando pelo mundo. Montou uma empresa especializada em salvar animais marinhos e, no momento, está no “fim do mundo”!
- Fim do Mundo?
- É como chamam uma cidade na Argentina de nome Ushuaia, lá no Canal de Beagle. É um paraíso ecológico e eles estão lá estudando os castores.
- Castores? Na Patagônia?
- Foram levados para lá, com objetivos comerciais, há 70 anos atrás. O comércio não deu certo e eles acabaram ficando livres e sem predadores. No ano 2000 já eram 70000 e hoje eu nem sei. E eles foram estudar o assunto.
- Eles?
- Ele e a esposa! Essa também foi uma batalhadora.
- Como assim?
- Paquerava ele desde o primeiro grau e ele não dava a menor bola pra ela. Como ela cresceu muito rápido e “adolesceu” cedo, ele nem notava que ela existia. Na faculdade eles se reencontraram e aí ela não deixou por menos. Numa festa, encostou ele na parede e começaram a namorar. Daí, para o casamento, foi um pulinho!
- Então os filhos também têm belas história de amor?
- E quem não tem, né? E foi ele quem teve a ideia de comprar essa casinha e acabou me fazendo uma surpresa de Natal. A montagem geral aqui dentro, foi ideia do Edu, pois o espaço era bom e não só a minha parte, como o restante do Universo teen é montado aqui e ele dirige tudo à distância. O espaço ficou ótimo e, de vez em quando, ele vem passar uns dias comigo...
- E o menor?
- Seguiu a carreira artística. [...]
- Você, sempre modesto!
- Mas é a verdade. Ele foi para os EUA, com uma bolsa de estudos, para uma das melhores academias de teatro do mundo e aprendeu tudo o que pode. Agora está produzindo a mesma peça que fizemos em 1999, só que com uma estrutura altamente sofisticada [...]. Estão na África e ele ainda representa o “Astronauta”.
- É... pensando bem, a peça ainda é muito atual. Falava sobre crianças que ficavam mais tempo vendo televisão do que brincando e que adoeceram por falta de curiosidade.
- Só que as músicas, agora, são tocadas ao vivo e os bonecos são robôs que, com efeitos especiais, são substituídos pelos atores. Ele também casou, mas era mais namorador do que o mais velho.
- E a filha adotiva?
- Seguiu uma vida tranquila. Fez todos os cursos que queria e agora é advogada em São Paulo; mas vive sendo convidada para fazer fotos! Ela sempre foi muito bonita e virou modelo por esporte. [...]
- Todos eles moram aqui dentro – apontou para o peito - e as distâncias hoje são bem menores. Os voos são rápidos e você pode acordar na Europa, almoçar nos EUA e jantar aqui em Ribeirão. Desde que o trabalho permita. Mas é lógico que sinto saudades... 
 
Sentia que os anos passavam na minha frente em questão de segundos. Quanta coisa aconteceu na vida dele e na minha. E ele nunca me esqueceu e nem eu também. 
 
- Bom, agora é melhor vocês descansarem, pois teremos muita atividade amanhã.

Fomos instaladas em um dos chalés. Todos eram iguais e possuíam a mesma decoração. Priti desmaiou cedo e nem conseguimos conversar mais nada. A minha cabeça rodava, de tanta informação. No canto da sala, um velho computador PC... e um CD escrito: “Para você”.

Não resisti a tentação e, apesar do cansaço, fui ver do que se tratava... Liguei o aparelho e instalei o CD que começava tocando “O Vento”, uma música velha conhecida, de uma banda antiga de Minas Gerais. A seguir o título: “O Sonho de Bela”.

- Nossa! O que é isso?

Fui vendo passo a passo. Havia toda a história dos nossos velhos e-mails, as fotos que eu mandei e que ele mandou; os livros e as músicas que eu gostava; o filme da minha formatura de 8ª série; todos os meus livros, além de fotos do meu casamento, nascimento dos meus filhos e um arquivo “Leia-me”.

“Oi, Bela! Você reconhecerá todo o conteúdo do CD; mas vá revendo aos poucos. O que eu tenho hoje, boa parte devo a você pois, com a experiência que adquiri nas nossas conversas, pude aprender e passar para outros garotos e garotas os caminhos menos árduos. A sua história me deu a chance de ver um momento mágico, que foi a sua descoberta da adolescência, coisa que, às vezes, nem os pais conseguem ver e, no máximo, descobrem que já aconteceu. A sua mudança foi fantástica, pena que não foi possível ser mais suave, houve sofrimento, mas você já estava pronta... Aproveite. Ah! E não estranhe eu ter conseguido suas fotos na Índia. Um dia eu te conto essa mágica.”

Mágica? Tudo aqui parecia um conto de fadas! Fiquei mais de duas horas revendo minha história a partir dos 13 anos. Os textos, as músicas da época, acho que até o que eu sentia, passei a sentir de novo. Interessante, alguém saber tanto da gente e eu acabara de notar que sabia muito pouco dele. Falou muito de tudo e de todos, mas havia algo ainda a ser descoberto, pois dele pouco falava. E então, a exaustão me fez desmaiar de tanto sono...

Eu sou doc

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