Capítulo 20 - Ano Novo

Ao chegar, fomos recepcionados pela Rafa. Rô também foi, naturalmente. Reclamou da volta precoce para a Índia mas, no avião, contamos o que acontecera.

- Quer dizer que posso abrir uma porta de armário e encontrar um elevador?
- E lá também tem charrete, cachoeiras e uma porção de gente legal.
- E tem outros garotos?
- Muitos. O Guido tem netos bem espertos. E o pai dele é bem animado.
- Então esse é que o Rô? Sua mãe falou muito de você.
- Oi, Rafa! Que bom te ver!
- Todos sentimos falta de vocês. Ainda teremos que esperar um pouco. Sid ainda vai desembarcar.
- Acho que já desembarcou...
- Ops... também acho!

De longe, Priti já tinha identificado o menino e correra ao seu encontro.
 
- Mãe, aquele é que é o namorado da Pri?
- É sim! Ele é filho do Guido.

Eles se aproximaram sorridentes e de mãos dadas.

- É você que vai casar com minha irmã??
- Bom... talvez, né? Mas você é que é o Rô? Muito prazer. Eu sou Sid - disse meio sem graça.
- É você que sabe saltar? Eu também sei nadar. Mas saltar de cachoeira eu não aprendi. Você me ensina?
- Nem pensar. Você ainda é muito pequeno – disse eu, cortando logo o assunto.
- Saltar de cachoeira é muito perigoso e a gente só faz com um bom motivo - piscou para Priti. - Mas posso te mostrar o lugar.
- E os armários, a charrete e tudo o mais?
- O que você quiser.
- Já vi que não vai sobrar nem tempo pra mim, né? - disse Priti, enciumada com a fascinação do irmão.
- Bom, vamos indo. Guido nos aguarda ansioso. E tem uma surpresa para vocês! Surpresa? Mais uma? E logo na chegada?

Percorremos a estrada, que já fazia parte das nossas vidas, ansiosos pela chegada. Na casa, Sid levou as malas para o nosso chalé, acompanhado da Pri e do Rô. Na varanda, sentado na cadeira de balanço, estava o Gui com um visitante de costas para a porta.

- Bela! Que bom que vocês chegaram!

Nisso, o visitante se levanta. Aquela figura de quase 2 metros de altura e de olhos verdes como os de Priti.

- Arthur!!!!

Pois é! Arthur já estava lá nos esperando. Pulei no colo dele, nos abraçamos, nos beijamos. Quantas saudades...

- Oh! Meu amor! Que saudades! E as crianças?
- Bom, vou deixar vocês a sós. Depois eu trago as crianças.
- Ah! Gui. Fique à vontade!
- Estou à vontade. A casa é de vocês. Já volto!

Ele saiu rápido. Eu estava meio constrangida com a situação, mas muito feliz. Não via meu marido há quase 15 dias.

- Então? Gostou da surpresa?
- Mas é claro!!! Por que não me disse?
- Porque eu não tinha certeza se conseguiria estar aqui. O Guido me falou que vocês pretendiam vir e quando soube, me avisou.
- Mas como, isso? Ele te avisou? Vocês se conheciam?
- Só por e-mails.
- Por e-mails? Eu nem sabia que você andava na Internet naquela época! Quando a gente se conheceu, você só queria saber de futebol e garotas. E muitas garotas, né?
- Vai voltar com esse assunto? Você sabe que você sempre foi a minha única paixão - e me beijou longamente.
- Tá bom, tá bom! Mas vai logo contando essa história.
- Bom, acho que agora ele não vai se importar.
- Como assim?
- Eu descobri a HP do Adolescente logo depois que você foi embora. E descobri que ele te conhecia porque, no dia do seu aniversário de 15 anos, ele colocou uma observação a respeito na HP. Aí fiz contato e ele ficou de me ajudar.
- Ajudar?
- Demorou um pouco, mas ele conseguiu te localizar na Índia através do Edu, que estava na Europa. Aí, a gente foi conversando e ele me ajudou a ir te procurar. Só que me fez prometer que eu não ia te contar nada até que ele autorizasse. Eu, óbvio, concordei.
- Então foi assim que ele conseguiu as fotos do casamento e tudo o mais?
- Essa foi a mágica! E os livros eu também mandei.
- Seu cretino! Isso é coisa que se faça?
- Ops! Cheguei em má hora!
- Pai!!!???

Priti pulou no colo de Arthur, seguida do Rô.

- Minha princesinha! Que saudades! E Rô! Está gostando daqui?
- Esse lugar é lindo. E o Sid falou que vai me levar pra passear de charrete, posso?
- Ah! Sid! Como vai?
- Vou bem. O senhor fez boa viagem?
- Com certeza. Bom conhecê-lo também. A cena do salto da cachoeira foi sensacional!
- Obrigado! O senhor viu tudo?
- Guido me mandou o link do satélite. Eu acompanhei a visita anterior. Pena que não estava aqui. Priti está cada dia mais bonita. E o Rô cada dia maior!
- Bom, acomodem-se e sintam-se em casa. Hoje é o último dia do ano e temos que aprontar a festa.
- Mas não é a Rafa que faz as festas?
- Essa eu preparei sozinho.
- Então preciso de um guia para conhecer a cidade. Sid se oferece?
- Perfeitamente, senhor.
- Vou também! - disse o Rô
- E eu...
- Você fica com sua mãe para ajudar com as malas!
- Ah! Pai!
- Calma, filha. Vocês acabaram de chegar e já conhecem bem o lugar. E depois você terá o tempo que quiser para namorar.

Obediente como era ela, aceitou a proposta mas, evidentemente, não gostou. Resolvi distraí-la rapidamente com as malas e depois saímos para andar também. Encontramos Guido atarefado, na porta da casa da Dona Leny, conversando com um grupo de chineses.

- Atrapalhamos?
- De forma alguma. O Sr. Chang é que está aprontando os fogos. Nisso os chineses são ótimos. Vamos entrar um pouco. Meus pais saíram e só estão as crianças com a Julya.
- Sua filha?
- Isso! Ela não veio no Natal e agora está aqui com o marido. […] Você vai ficar o fim de semana todo??
- No que depender de mim e da Priti, com certeza, não é Pri? Priti? Ué? Cadê ela?
- Olha lá!

Priti já estava no quintal jogando futebol com os meninos e com a Julya.

- Minha filha é ótima! Brinca como uma criança e pensa como um adulto.
- Vamos sentar aqui na varanda mesmo. Quer que pegue um refresco?
- Não, obrigada.
- E diga: como você se sente agora? Desta vez está um pouco diferente, né?
- Estou bem mais à vontade. E a surpresa do Arthur foi incrível. O que mais você me reserva? Acho que não vou mais conseguir viver sem essas surpresas.
- Eu é que acho que me surpreendi.
- Com o quê?
- Com a possibilidade de ver as pessoas felizes à minha volta. Acho que minha missão está se completando.
- Ainda falta. A missão nunca está completa. Ou você pensa em se aninhar na base dos pelos do coelho?
- Você não esquece do “Mundo de Sofia”, né?
- Você nunca deixou que eu esquecesse. Aceitar o comodismo e ficar bem confortável, escondido de coisas novas, nunca foi o seu discurso. O que mudou em você?
- A idade, talvez.
- A idade não pode ser desculpa. Aliás, nada pode ser desculpa. A gente tem que viver sempre procurando coisas novas. Isso estava no livro e você sempre fez questão disso. Só que você vive trancado dentro de você mesmo. Fala pouco de suas coisas e de seus sentimentos. Vive o livro dos outros.
- Mas você foi um capítulo especial. Difícil foi esperar tanto tempo. Aí a gente acaba se trancando mesmo.
- Esperar faz parte, isso você também me ensinou. Ter paciência que, no momento certo, o destino resolverá.
- Mas o destino prega peças. E a gente pode acabar sem nada. Isso sempre me angustia. Viver o momento é mais importante. […] As injustiças e frustrações profissionais podem alterar muito a cabeça dos adultos e eu estava muito magoado com a destruição de um sonho que eu havia construído.
- O serviço que você criou no hospital?
- Exato. Por motivos políticos, eu fui obrigado a sair de lá, deixando tudo para trás. E ao invés de manter o trabalho já feito, os que me sucederam simplesmente optaram por fechar o serviço, deixando toda uma população infantil sem atendimento. E foi outra grande perda pra mim.
- Lembro que, na época, isso foi um grande escândalo, que até foi parar nos jornais.
- Exato, mas não adiantou nada. […] Mas o momento é de festa - recuperou-se rapidamente como sempre. - Então vamos subir, pois o almoço já deve estar pronto.
- Priti, nós vamos subir.
- Já vou mãe.
- Chame a Julya e as crianças para irem conhecer o Rô e almoçarem lá em casa.

E assim foi feito. Acho que a minha missão é que, talvez, tenha chegado ao fim. Ele conseguiu botar pra fora o seu próprio fantasma. De uma forma muito especial, eu consegui entrar um pouco naquele coração tão sofrido e tão grande e, talvez deixado a porta aberta. Entendi o significado da chave: ele me deu a oportunidade de fazê-lo mudar de comportamento, deixar de ser duro com ele mesmo e passar a viver melhor. O tempo se incumbiria de mostrar isso... mas só o tempo. Sempre o tempo.
 
 
Eu sou doc

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