Capítulo 18 - A noite na fazenda e as revelações

A festa não terminava nunca. Outras pessoas iam chegando, enquanto as que estavam iam embora. Eu resolvi me retirar e sentei na varanda da casa grande esperando o por do sol.

- É lindo, não?
- Estava tão distraída que nem vi você chegar.
- Eu gosto de ver o por do sol também. O Japão é a terra do sol poente e gosto muito de lá.
- Cada uma de nós seguiu destinos fora do Brasil, não é?
- E tivemos o mesmo amigo comum. Acho que somos um pouco parecidas.
- Você é uma mulher muito forte Bela, teve coragem de perseguir o seu destino. Admiro muito a atitude que você teve, ainda mais porque tinha apenas 15 anos. Neste ponto acho que não somos tão parecidas.
- Pode até ser, mas as coisas não foram assim tão simples.

Acho que um momento de angústia estava me fazendo falar. Não sei como, mas a Fê tornava isto possível só com o brilho do olhar, um sorriso infantil, mas muito gentil. Senti que estava entregue a boas mãos e que poderia me abrir, confiar e resolvi contar a minha história.

- Quando fui embora do Brasil, não sabia ao certo o que estava fazendo, acabei fugindo.
- Do que você fugia? Do que uma menina de 15 anos poderia querer fugir?
- Comecei a ver que precisava de mais espaço, de vôos mais longos, sabe? Depois do meu pai ter me proibido de conhecer o Guido pessoalmente, decidi que estava na hora de fazer alguma coisa, antes que o meu dia a dia, de cidade de interior, me anestesiasse de vez e eu jamais conseguisse sair dela. Pior ainda era imaginar que poderia tentar educar meus filhos daquela forma.
- Seus pais eram muito rígidos?
- De certa forma. Mas não era por mal. Como o Gui costuma falar, a minha educação seguia um modelo que já tinha mais de 70 anos... Mas não sinto mágoas desse tempo que passei no Brasil. O que me dói, é ver que eles ainda não conseguiram superar a minha estadia na Índia.
- E aí, lá na Índia, as coisas pareceram ficar mais fáceis?
- Não, não mesmo. Ainda mais porque nem eu sabia que iria ficar lá pra sempre. Eu não planejei nada, aconteceu. No embarque estava muito nervosa e o tempo todo tinha a sensação de que alguma coisa aconteceria lá, só não conseguia saber o que. Era algo que me assustava. No momento em que pisei na Índia, vi uma cena que me marcou muito.
- O que foi?
- Um homem algemado, já velho, passando na minha frente. Ele estava com algemas, mas, enigmaticamente, sorria. A liberdade dele tinha sido tirada – depois vim a saber que era um preso político - mas ele fez aquilo que acreditava, seguiu o seu destino, e até foi livre, assumindo os riscos. Paralisei com aquela cena e decidi tomar algum partido na minha vida. Daí, tive sérios problemas.
- Mas naquela hora você entendeu o pressentimento, né?
- Com certeza, entendi tudo. Mas fiquei maluca e quis fazer de tudo de uma só vez. Mal deixava tempo para comer, beber, ou qualquer outra coisa que fosse me paralisar por muito tempo. Tinha ficado tempo demais da minha vida paralisada, agora queria fazer tudo, só que exagerei. Fiz tudo de uma vez. Tragicamente passei da minha infância, de proteção excessiva, para o mundo de verdade, às vezes cruel, e gostei do que vi. Experimentei a vida, arrisquei, ousei, badalei, inverti, vivi. E foi tão loucamente, que adoeci.
- Deixou para trás todos os seus valores nesse tempo?
- Deixei uma garota de interior para trás e fiz nascer a Bela que você conhece e que, na verdade, era muito mais eu do que eu imaginava. E foi ótimo, porque não abandonei os meus valores, apenas criei outros, aprendi a olhar as coisas, desta vez, com os meus olhos, não com os dos outros. Criei o meu próprio livro e não virei personagem do livro dos outros.
- E a escrita?
- Foi a minha obsessão intelectual da época. E acho que foi por causa dela que adoeci. Sempre quis escrever, a vida toda tinha este sonho, e ali parecia que a inspiração brotava da terra e eu não queria deixar isto passar. Já perto de voltar para casa, “ganhei” essa estafa, foi isto mesmo, uma estafa. Havia exagerado, pois 15 anos em 15 dias é muito, né?
- Ganhou a doença? Isso foi um presente?
- Foi, porque sem ela eu não ficaria na Índia; sem isso meus pais teriam me levado e, com certeza, no Brasil, eu enlouqueceria e sabe-se lá do que seria capaz. Ali estava segura disso e só queria viver intensamente, não deixar nada passar. Depois da doença, dei um freio para esta loucura toda. A liberdade é uma sensação que vicia e nos deixa sem controle. Voltei para o livro, meus pais desistiram de me fazer retornar mas, o tempo todo, ficaram numa posição de “onde foi que eu errei?”; e eu estava recuperada e pronta para enfrentar minha nova vida, sem pressa agora.

- Senhoras! Hora de ir! O Sr. Holland já está a postos.

O chamado de Gui interrompeu a nossa conversa, mas já era hora mesmo. A sensação que tive depois da conversa foi de alívio mesmo. A Fê era uma presença magnífica. Senti-me até mais leve...

Retornamos no caminhãozinho do Sr. Holland. Preferi não falar nada com a Pri. Deixei-a conversando com Sid e fui dormir. Última noite do último dia. O lindo dia foi encoberto de nuvens e era anúncio de uma chuva de verão. Todos se recolheram cedo.
 
 
Eu sou doc

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