Os Cavalos

Alcionne preparara o quarto como o de uma princesa. Todos eram iguais. As camas de madeira escura com a cabeceira alta e nos pés havia um enfeite de cada lado que, quando retirado, deixava a mostra um orifício cilíndrico destinado a hastes de madeira para a colocação de um cortinado, de filó branco, muito útil por causa dos insetos que sempre nos visitavam a noite. Além disso, somente uma cômoda com três gavetões e uma mesinha de cabeceira além de um suporte para chapéus e casacos que eu usava para pendurar os vestidos. Pedi para que os armários fossem retirados.

E Priti dormiu profundamente coberta por uma colcha de babados feitos à mão com a cabeça deitada em um enorme travesseiro de penas encapado por uma fronha que combinava com o conjunto.

Fiquei um bom tempo com Carol no balanço que havia nos fundos da casa. Tão distraída estava que nem perguntou sobre a moça. Ela não sabia que tinha irmãos. Sobre o pai eu falei que ele morava longe e que não podia vir nos ver por causa da distância. Ela não era a única menina sem pai na escola pois era comum os pais morarem nas fazendas sem as famílias e só aparecerem de vez em quando na cidade. Tanto que, na escola, a gente não fazia festa de Dia dos Pais para não criar problemas.

Acabei nem vendo o tempo passar. De repente ouvi um barulhão na picada que ligava o sítio à estrada. Seu João vira meu carro (se é que alguém podia chamar aquele jipe de carro), trocara o pneu e o trouxera junto com o caminhão com o cavalo. Deixei Carolina em cima de uma toalha que cobria o gramado distraída com alguns brinquedos, enrolei o balanço no alto para que ela não o usasse na minha ausência, pedi para Alcionne ficar olhando suas atividades e fui cumprimentar seu João.

- Bom dia, dona Bela! A senhora esqueceu o jipe na estrada e eu trouxe também.
- Vai começar com gozação, seu João?
- Ah! Mas logo vi que havia um problema. E mulher não é feita pra trocar pneu, uai!
- Eu te agradeço demais o favor. Fico te devendo mais essa gentileza.
- Sem problemas. A senhora ensina meus netos e eles adoram suas aulas. É o mínimo que a gente pode fazer. E a pequenina?
- Está lá atrás, brincando.

No caminhão de seu João haviam dois animais. Um parecia dócil, era castanho com uma mancha branca na testa. O outro era enorme, negro, com olhar fogoso e uma crina bem escovada e um pelo sem qualquer mancha. O ajudante parecia um pouco enrolado para retirar o castanho sem soltar o outro que estava bastante agitado.

- Esse é que nunca conseguimos dar jeito. Ninguém consegue domá-lo e vou levá-lo para castração para ver se fica mais calmo e sirva para uso no campo – explicou seu João.

O menino era franzino e muito ágil mas, num momento de distração, o cavalo negro pulou, soltou-se das amarras e saiu correndo em direção aos fundos da casa onde Carolina estava.

- Alcionne! Tira Carolina daí! Tira Carolina daí!

Corremos em direção aos fundos da casa. Parada em frente ao baio fogoso , Priti segurava o cristal pendurado no cordão entre o dedo indicador e o polegar. Carolina a observava admirada. O animal fez uma reverência - como só havia visto antes numa apresentação em Viena na Suíça - e ficou imóvel enquanto Priti acariciava sua crina. Pegou Carol no colo e levou-a próxima ao animal para que ela o acariciasse também. A menina sorria muito feliz. Me aproximei das duas e Priti sorriu e me entregou a irmã. A seguir ela aproveitou um caixote de madeira como base e montou o cavalo que assumiu uma marcha bem tranquila e, a seguir, um galope até a estrada de acesso ao asfalto.

- Vemos aqui uma deusa amazona, dona Bela! – disse seu João tentando acalmar o ambiente.

Eu estava paralisada, com Carol no colo, sem entender o que se passava. Priti nunca montara em pelo e muito menos um cavalo selvagem.

- Quem é a menina, dona Bela?
- É filha dela, seu João. – intercedeu Alcionne. Chegou de madrugada.
- Sua filha, mãe? Minha irmã? Quer dizer que eu tenho uma irmã?
- Bela moça! Assim como a mãe. E como monta! E você, pequena Carol, vai ficar bonita desse jeito.

Nem respondi às perguntas de Carol. Eu mal entendia o que se passava. De qualquer forma, seu João estava certo. Vestida com uma calça jeans e uma bota preta, com os cabelos soltos voando ao vento produzido pelo animal à galope, produzia uma visão maravilhosa. Depois de uma pequena volta com uma admirável performance, ela se aproximou.

- Quer passear? – disse dirigindo-se para Carolina.
- Posso mãe?

Ainda engasgada com meu espanto, misto de admiração, respondi.

- Priti! Carolina nunca montou assim!
- Imagino. Mas como um nome tão bonito e um rostinho tão meigo ela não terá dificuldade.
- Deixa eu ir mãe?- ansiosa por montar, Carolina desistiu das perguntas.
- Vá! Pode ir. Priti. Essa é sua irmã.

Priti abriu outro sorriso.

- Então venha, mana! Fico muito feliz de ter uma irmãzinha tão esperta.

Para meu espanto a empatia entre as duas foi impressionante. Apesar de já terem conversado logo cedo, antes que eu acordasse, não pensei que a aceitação de ambas fosse tão fácil. Priti deu uma volta ao redor da casa, bem devagar para não assustar Carolina e se aproximou perguntando:

- É seu, mãe?
- Não. Estou comprando um menor para a charrete.
- Dona Bela – os olhos de seu João brilhavam – porque a senhora não fica com os dois? Por pouco ele não vira linguiça! E caiu na gargalhada (ele era muito simpático!).
- Hum, não sei!
- Ah! Mãe. Eu adoraria.
- Ah! Mãe! Deixe eu ficar com ele?

Nem precisa dizer que fechei o negócio. Agora eram duas a me pedir as coisas. Seu João ajudou a arrumar as antigas selas, fez alguns reparos, limpou a garagem da charrete e parecia uma criança brincando enquanto completava a lida.

Priti e Carol acompanharam de perto todos os passos e eu fiquei ajudando na organização. Depois Priti deu mais uma volta a cavalo e terminou dando-lhe um banho na cocheira também consertada por eles.

- Mãe! Que maravilha! Estou super contente. Adoro montar. Tenho um desses também. Parecem gêmeos.
- Tem? Aonde? –perguntei
- Na minha casa! Ou você acha que eu morava ao relento?
- Talvez. No lugar onde eu vi você pela última vez as casa nem teto tinham.
- Ah! Marte! Mas isso é outra história.
- Que você poderia aproveitar e me contar.
- Tá bom, mãe.
 
(continua)



 Eu sou doc

Comentários