Capítulo 3 - O reencontro

Não precisa nem dizer que Priti comprou passagem para mim, para o dia seguinte, e fez tudo para que eu fosse encontrar com ele. Obviamente tive que contar o resto dos detalhes, mostrar as fotos, a fita de vídeo, os livros e tudo o mais e ela ficou fascinada. Isso tomou o resto do dia. A curiosidade que ela herdou, a mesma que me empurrou a vida toda, junto com uma coragem excepcional, fizeram dela uma garota fora dos padrões. E junto com a tecnologia e a melhoria do ensino escolar (passaram a ensinar o que interessa) a menina era maravilhosa.

Falei para minha mãe que tinha uns negócios do Arthur, meu marido, para resolver no Rio, me despedi do Rô e, logo de manhã, saí mais do que depressa em direção ao Aeroporto.

Cheguei lá duas horas antes do embarque. Fiz o check-in e tudo o mais e aguardava no saguão até... Mas o que é isso??

E lá vinha ela! Mochila nas costas, cabelos com diversas presilhas e duas trancinhas de cada lado, caiam perto dos olhos. De roupa, só um tradicional short e camiseta.

- O que você está fazendo aqui no aeroporto?
- Estou bem assim?
- Está ótima, mas para o quê? - cheguei a temer a resposta.
- Vou também...
- De jeito nenhum! Eu espero por esse encontro há 20 anos e nem vem, que você não vai ficar perturbando.
- Ah! Mãe...

Eu estava sendo egoísta. Com o pai na Índia e o irmão mais novo encantado com os avós, o que uma menina de 15 anos ia ficar fazendo sem a mãe e sem conhecer ninguém?

- E o que sua avó vai pensar? Que desculpa você deu?
- Nada de mais. Falei que você já tinha concordado e que estava me esperando no aeroporto. E como fui eu quem comprou as passagens, não houve erro.
- Tá bom... mas se comporte.
- Como sempre, né?

Esse “né”... até ela já estava falando!

A viagem foi muito rápida. Minha cidade tinha evoluído e o aeroporto até já fazia voos internacionais. Chegamos ao Aeroporto de Valente, que era o local mais próximo, em menos de 1 hora. Como o voo saiu ao meio-dia, aproveitamos o almoço do avião. Um motorista nos aguardava no desembarque com aquela plaquetinha com meu nome - sempre achei isso o maior mico - mas não teci comentários. Ribeirão Florido ainda era distante 15 minutos. Em certa ocasião, no passado, ele me mandara umas fotos que mostravam uma cidade pequena de interior com paralelepípedos, casinhas pequenas e duas pracinhas: uma no centro da cidade e outra em frente à igreja. O prédio mais alto era o da Prefeitura e edifícios residenciais não existiam. Pouco movimento de automóveis e nenhum sinal luminoso havia nos cruzamentos. Deveria estar bem diferente agora já que até a minha cidade evoluiu. 

Chegamos rápido mas a ansiedade era muito grande; toda o percurso do Paraná até aqui não durou nem duas horas mas, para mim, pareceu um século. O motorista havia dito que raramente alguém de fora ia até lá. Qual não foi minha surpresa quando reconheci os locais das fotos: as mesmas pracinhas, a mesma igrejinha e automóveis eram raríssimos. Bem que ele disse que a cidade não mudava nunca. A casa ficava no alto do morro numa rua onde havia um antigo clube que parecia desativado. A ladeira era bem íngreme mas a subida aconteceu sem problemas. Lá em cima, uma guarita. Um portão se abriu e continuamos a entrar. O motorista nos deixou e foi embora. Do lado de fora da casa, a vista da cidade era fantástica: as casinhas pareciam de boneca; ruas pequenas e a igreja no local mais alto da cidade, como era comum no interior. 

Haviam 3 chalés bem antigos de madeira, na borda do morro: “- Para hóspedes?” - pensei. A casa grande era muito bonita e me lembrava a da minha avó, no interior de São Paulo. Uma enorme muralha de pedras circundava a casa; por trás do muro, um jardim verde brilhante, com flores coloridas; eram lírios amarelos, azaleias púrpuras e uma imensidão de margaridas brancas. Passado o jardim, estava aquela fachada de tijolos bem avermelhados com as grandes janelas de madeira, emolduradas com passe-partout verde musgo. A grande porta de mogno na entrada da casa era, talvez, um pouco assustadora, mas bem adequada. Um mundo se escondia atrás daquela porta. Entramos. Os sofás eram daqueles antigos, do tempo da minha avó. Parecia que o tempo havia parado naquele lugar. Enquanto eu ficava admirando, Priti foi correndo na frente, já entrando no cômodo seguinte. Eu também estava com a maior vontade de correr e fui logo atrás. Ao me aproximar, escutei:

- Nossa! A Índia te fez muito bem... Você continua igual às fotos! Só que não me lembrava desses olhos lindos! Sabia que você era muito bonita, mas olhos claros desse jeito...
- É que nisso ela puxou ao pai - disse eu muito engasgada - o resto...

Ele me olhou e se fez um silêncio... Tirou os óculos e colocou-os na mesa e em um segundo estava na minha frente e me abraçava. Eu chorava como criança quando ele disse:
- Esta cena seria num aeroporto em 1999...
- Mas acabou sendo hoje e com uma plateia muito especial...

Priti observava em silêncio.

- Mas uma linda menina... igual a você, só os olhos são mais claros. Quase me confundi... é a idade... ahahahahah.
- Os cabelos são mais longos que os meus. Mas eu preferia usá-los lisos.
- Mas espero que o resto seja seu, principalmente o coração... Aliás, você trouxe a chave? 

Deixei escapar um riso meio tímido e acho que fiquei roxa... 

- Que chave? - perguntou Priti, não entendendo nada.
- Não contou a ela sobre as coisas que eu te dei?
- Mamãe me mostrou um monte de coisas, mas eu não vi nenhuma chave.
- A chave do meu coração - e ele novamente me abraçou com o mesmo carinho que transmitia ao escrever – “vinte anos” - ele disse – “e já vem com filha!” - acho que seus olhos encheram d’água mas rapidamente recuperou-se.
- Não seguiu meus conselhos, né?
- Muito pelo contrário. Me ajudaram durante muito tempo. Quer ver? Pergunte a ela o apelido do pai dela - disse eu, quase caindo na risada
- Ah! Mãe... o apelido é muito feio...
- Você nem imagina os apelidos dos amigos da sua mãe... Tinha um que a gente chamava de SAPO!
- E é esse mesmo o apelido do pai dela - disse-lhe, já às gargalhadas.
- Aquele que você era apaixonada e que seu pai não gostava?
- O próprio.
- Ahahahahahahaha! Eu não falei que paixão crônica dá nisso? Mas vamos entrando, eu vou mostrando a casa e a gente vai conversando. Vocês querem descansar um pouco? Fiquem à vontade.
- A viagem até aqui foi rápida e não estou cansada. E você, Pri?
- Que nada, mãe, comigo está tudo bem.
- De qualquer maneira vou pedir para levarem suas malas para seu quarto.

A seguir, dois garotos e uma menina surgiram e levaram nossas coisas. Ele deu algumas orientações e nos levou para conhecer o restante da casa. Passamos da sala para a varanda dos fundos, que era ampla e confortável, chão de ardósia, bem verde, cercada por um corrimão de madeira, uma rede num canto, uma enorme cadeira de balanço no outro, o canto dos passarinhos ao longe... Uma delícia! E havia uma ligação com a cozinha, através de uma grande janela. A cozinha tinha o cheiro adocicado de laranja; uma velha geladeira branca e barulhenta contrastava com o ambiente; ao seu lado, um fogão de lenha que me fez lembrar minha avó - aliás quase a vi ali, cozinhando a macarronada dos domingos. Sentamos em confortáveis cadeiras de vime enquanto ele ficou na cadeira de balanço.

- Vocês querem um refresco? Essa é a parte da casa que eu mais gosto. Daqui eu ouço as cigarras, à tarde.
- Já vi que estou num museu de história... - disse Priti cujos olhos, verdes cor de água, brilhavam e refletiam o sol!
- Menina, isso é coisa que se diga?
- Ah! Bela... ahahahahahaha - adolescentes nunca mudam - ahahahahahaha.
- Mas mãe, as coisas que estão aqui eu nunca vi em lugar nenhum... só em museus! Estou encantada! Desculpe se não me fiz entender!
- Olha, meu bem! Sendo filha da Bela, você pode fazer aqui o que quiser! E então, me fale um pouquinho de você! Seu nome é Priti, né? Foi você quem me mandou os e-mails, né?
- Priti Elisa. Pri é o apelido! Posso chamar você de Gui?
- Claro que sim. Sua mãe me chamava assim também. E seu nome é tão lindo quanto você. E me fale mais: é uma adolescente boazinha ou dá muito trabalho para a sua mãe? E sua mãe? Trata você direitinho? E tem irmãos?
- Bom... Eu tenho um irmão menor, o Rô – falou meio gaguejante, um pouco sem graça, diante daquela figura que parecia ter saído de um livro, de tanto que eu falara dele! Interrompi para ajudar...
- Chama-se Darshan Rodrigo. Ele tem 9 anos. Ambos são ótimos! De mim, ela reclama um pouco, às vezes...
- Mãe!!!
- É que não pude te ensinar tudo, né? Depois que você sumiu, só soube de alguma coisa através dos livros.
- É... e de você eu não soube nada. Fiquei mais de 2 anos sem contato com a Internet e, nessa época, eu só fazia escrever. Você ainda é médico? Pelo visto prosperou; sua casa é linda...
- É uma casa velha, mas é a minha morada. Ainda sou médico, mas trabalho pouco nessa área. Sou convidado para avaliar um ou outro paciente, aonde a tecnologia tem dificuldades.
- Mas a tecnologia não consegue resolver os problemas de saúde? - perguntou Priti, já um pouco mais à vontade.
- Uma boa parte. Mas existem coisas na ciência que não são explicadas e aí a experiência entra para ajudar.
- É que ela é da geração francamente tecnológica!
- Eles hoje são mais espertos, mas não podemos deixar que percam a sensibilidade. Mas fale de você também. Sobre o que está escrevendo agora?
- O editor me pediu pra falar de um assunto que você gostava: adolescência e seus problemas. Uma visão evolutiva! E pediu para ser um romance, como os outros.
- Ahahahahahahahah... não diga! Então mais uma vez esse seu anjo aqui vai te ajudar. Lembra da mostra cultural? Era sobre o cérebro, não era?
- Se era! E tiramos 9,5!

A Mostra Cultural foi um trabalho de ciências da oitava série. Ele me mandou várias fotos do cérebro e uma fita de vídeo. O trabalho ficou ótimo e fiz o maior sucesso.

Nesse momento ele se levantou e nos encaminhou até o pátio principal. Lá, chegamos aos chalés e entramos! A decoração era uma gracinha, tudo em madeira; lindo mesmo! Na cama os edredões coloridos que sempre gostei. Havia almofadinhas que eu, também, sempre adorei, mas minha mãe passou anos insistindo que me causavam alergia - na Índia comprei um monte delas. Logo a esquerda da cama estava a janela, enorme, da qual eu tinha aquela vista maravilhosa, com alguns campos verdes com plantações e até vacas pastando, além da imensidão de “casinhas de bonecas” mais ao longe. Um pouco para a direita da cama estava a portinha de mogno do armário. Priti nem piscava. A seguir, ele se dirigiu ao armário... 

- Vamos por aqui...
Achei que ele era maluco mesmo. “ - Onde já se viu entrar em um armário?”
- É um elevador, mãe! - disse Priti empolgada.
Um elevador em um chalé de quase 40 anos?? E dentro de um armário? Entramos e rapidamente descemos dois andares. A porta se abriu...

Bem vindas ao Universo teen!

Priti entrou correndo, com os olhinhos brilhando, em direção a uma imensa tela de cristal líquido. Eu fiquei estupefata! Haviam várias telas menores com frases escritas em várias línguas. Um verdadeiro exército de pessoas andava de um lado para o outro, remexendo em arquivos de computador, fazendo edições, etc.

 
- Mas o que é isso tudo?
- Bom, depois que você foi [...], mas já estava trabalhando para a HP do Adolescente respondendo perguntas. O dono da HP, o Edu, transformou-a em um site comercial e passou a cobrar pelos anúncios. Só que a página foi fazendo cada vez mais sucesso e mais anunciantes queriam espaço. No ano 2000 ganhou um prêmio e foi considerada uma das três melhores páginas da Internet. Com isso, consequentemente, mais trabalho e ele resolveu me contratar full-time. E assim começou e, aos poucos, fui juntando um dinheirinho para a aposentadoria.
- Mas isso aqui ainda funciona até hoje!? Pensei que a Internet estivesse obsoleta...
- É claro que funciona! Quando a Internet foi abandonada e surgiu o Galaxy, o nome da revista mudou e passou a ser traduzida em vários idiomas. Priti, diga pra sua mãe o que é o Universo teen!
- Oh, mãe! Você só pensa nos seu livros! O Universo Teen é a melhor revista para adolescentes que existe, via Galaxy, e tem de tudo. Tem até um cara que responde perguntas... peraí!!! Não me diga que o Odi é você?
- Um apelido carinhoso que uma leitora me deu. Mas não confunda com o cachorro das estórias do Garfield, tá? - disse soltando uma gargalhada. - Odi vem de Odigo que significa guia em grego. E estou às suas ordens! Já me mandou alguma pergunta? Sua mãe me perguntava muito, mesmo antes das minhas aventuras na revista.
- Claro que já mandei, mas não quero falar sobre isso! Além do mais, já tinha perguntado pra minha mãe e você respondeu igualzinho. E não imagino quem seja o Garfield!
- Sua mãe foi bem educada e bem orientada, é por isso! Eu tenho umas revistas com as estórias do Garfield por aí e depois você pode dar uma olhada. Eu estava fascinada!
- Mas vamos ao que interessa! O que você deseja saber para o seu livro?
- Tudo! Mas vamos começar por onde?
- Pelo AMOR! Essa história é boa. E você tem uma bela história de amor para contar.


Eu sou doc

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