Capítulo 1 - A Chegada

Manhã do dia 15 de dezembro de 2020. 

Fim de ano sempre é uma confusão! Principalmente depois de ficar tantos anos fora do Brasil e voltar pra velha casa. Em 1999, 15 de dezembro fora uma quarta-feira e eu estava na “ressaca” da minha festa de formatura de oitava série. Eu namorava o Felipe, um garoto meio tímido mas muito legal. A formatura, numa terça-feira, teve reclamação dos pais, mas estávamos de férias e não fazia a menor diferença. Além do mais, a festa foi ótima. Tivemos uma missa e, para variar, eu chorei (sempre fui muito emotiva)! Depois viemos para casa, nos trocamos e fomos para o jantar. O salão estava lindo, a comida estava excelente e eu tirei muitas fotos. Depois da sobremesa nós saímos do salão e, conforme fomos sendo apresentados, pelo nosso nome e o do padrinho, fomos entrando. A banda, contratada para a festa, fez uma surpresa para nós cantando “Amigos para sempre” e eu fui convidada para fazer as homenagens – era a oradora - e todo mundo me aplaudiu. O maestro da banda me elogiou muito e disse que o colégio já havia descoberto um grande talento para apresentadora e possível jornalista (ele quase acertou)! Dancei a valsa com o meu padrinho (meu irmão), a seguir com meu pai e depois com os amigos. E, finalmente, começou o baile que todos esperavam ansiosamente. De início músicas lentas, mas o forte mesmo foram as músicas agitadas e eu cai na farra. Foi a melhor festa da minha vida! Dancei tanto que a alça do meu vestido arrebentou e tive que usar um improviso para não ter que voltar em casa e trocá-lo. Muita paquera, muitos amigos, quase todo mundo que eu queria estava lá. Pena que ele não foi.

- Manhêeeeee!!!!!! Onde eu guardo a minha roupa? 

Pronto, acorda Bela, que agora a vida é outra! Apesar de atender à minha filha, tentava não perder a sensação boa que as lembranças me davam.

- Ah! Filha! - respondi pausadamente - Veja qual o armário que está vago; nunca mais ninguém usou nada e deve estar tudo vazio!
- Mas tem muita poeira...
- Pegue um pano e peça para o Rô te ajudar.
- Meu irmão? Aquele já saiu com o vô há muito tempo.
- Então deixa por aí que depois eu arrumo... melhor, coloca naquele quarto do computador.
- Computador? Aquilo é um computador? Mais parece uma sucata! Nem no interior da Índia eu vi algo tão velho...
A Índia! Meu lar há tanto tempo.
- Mãe! Acorda, eu estou falando com você!
E, ao que parece, minhas lembranças terão que ficar mesmo para depois.
- É velho sim mas, na época, resolveu muitos problemas meus de escola e conheci muita gente com ele... e para de reclamar, que coisa!!! - Desta vez eu acordei mesmo.

Crianças sempre serão crianças - ainda mais uma guria de 15 anos. Engraçado olhar para ela e relembrar os meus 15 anos; é aquela sensação de espelho que a cumplicidade nos dá. Agora tudo mudou: tenho um marido, cresci e o tempo passou; da adolescente maluquinha, para a mãe de 35 anos. Dois filhos e muita responsabilidade. A menina, Priti Elisa, mas chamo de Pri, uma velha mania minha de simplificar os nomes - talvez um pouco adolescente, mas carinhosa - inteligente e cheia de vida. E o menino Darshan Rodrigo, o Rô; 9 anos, meio caladão, mas responsável e estudioso, além de ótimo jogador de basquete. Os nomes indianos foram ideia do pai para facilitar a vida deles no dia a dia lá na Índia.

- Manhêeeee!!!!!! Esse troço funciona!!!!! – Priti ligara o computador.
- É claro que funciona! Seus avós sempre mantiveram tudo arrumado.
- E como se usa?? Pra que serve esse negócio cheio de letras e números? E essa bolinha com esse botões?
- Teclado e mouse.
- Te o quê? E rato??? Detesto ratos!!!!!
- Ah! Agora não... Vamos arrumar as roupas nos armários e depois a gente brinca com as coisas velhas, ok?

Interessante a sensação! Pouco tempo dentro de casa e Pri começa a achar minhas coisas antigas que deixei pra trás. O passado voltava a bater forte dentro de mim. Saí para a Índia com quase 15 anos, pois este foi o meu presente de aniversário. Ia para a Disney, como era comum as garotas daquela época fazerem, mas minha irmã estava na Índia, fez a sugestão, aceitei, e aproveitei a oportunidade para um passeio exótico. Encontrei um mundo completamente diferente da minha cidadezinha do interior do Paraná. A cultura com a qual me deparei me fascinou por completo e a Índia me conquistou de imediato com suas cores vibrantes e seu povo alegre, um pouco por meu desejo inconsciente de liberdade e outro pela curiosidade de viver e conhecer aquele lugar que havia me acolhido tão bem. Foi assim que resolvi investir no que mais gostava de fazer: escrever. Nos primeiros 5 dias, eu quase não dormia direito pois passeava durante o dia e escrevia durante a noite. Minha irmã estava de namoro com um inglês radicado lá - era editor de uma revista para adolescentes em Londres - e que adorou meu primeiro rascunho, me estimulando a continuar escrevendo. Era estranho ver aquele velho sonho infantil ir virando realidade. A vida toda tinha imaginado ser escritora e era quase febril o desejo que guardava em ver minhas ideias virando livros e, assim, chegando até as pessoas. O mais fantástico era isso estar acontecendo a quilômetros de casa. Acho que era o que eu precisava: essa aura mística que ronda a Índia até hoje e a liberdade para criar.

Até que eu caí em exaustão. A vontade de escrever e de conhecer mais aquele lugar era tamanha, que o corpo acabou não correspondendo aos desejos da alma e tive que diminuir o ritmo de vida, decidindo não voltar mais para o Brasil até terminar o que eu havia começado. A inspiração surgiu na Índia e senti que era lá que eu deveria ficar. Era um livro adolescente, um pouco dos meus diários, um pouco dos meus sonhos que, como eram os mesmos de grande parte das adolescentes da minha época, acabou fazendo muito sucesso. E talvez também reflita os sonhos das meninas de hoje, pois as edições se esgotam com muita facilidade. Difícil foi convencer meus pais de que eu não ia voltar na data combinada. E no Brasil ficaram meus pais, meus amigos e minhas paixões adolescentes.

O dia passou muito rápido e meus dois indianos deram o maior cansaço nos avós. Queriam ouvir muitas histórias do tempo em que eu era menina, coisas do Brasil, tudo mesmo. Dessa forma conseguiram amenizar um certo clima tenso que ainda existia entre meus pais e eu (o tempo havia passado, mas algumas cicatrizes parecem que jamais se fecham). Apesar de estar 20 anos fora e agora voltar para o Natal, ainda havia um olhar de tristeza e interrogação no rosto deles. “Onde erramos?” - talvez se perguntassem. Se eles se permitissem pensar no que acertaram me deixando ficar lá, me libertando ao mundo para o qual havia nascido... se eles conseguissem polir esta máscara com a qual me enxergavam e ver o quanto eu fiquei feliz, talvez sofressem menos e a mágoa, que nem o tempo apagou direito, poderia desaparecer.

O filho menor desmaiou de sono, logo após o jantar. A menina deitou-se também, a seguir, no quarto que fora da minha irmã. Eu fiquei na sala mais um pouco. Os avós também dormiram. 

Foi bom; precisavam descansar. A viagem foi difícil e, para meus pais, a chegada também havia sido um pouco tumultuada. E dormir resolveu um problema: meu retorno já estava combinado há quase dois anos, quando retomei o contato com eles, porém seria ruim ficar conversando sobre os porquês do passado.

De repente um barulho meio musical - a luz do quarto do computador acesa - fui ver o que acontecia. 

- Hum, hum!?
- Ih! Você ainda está acordada??
- O que você está fazendo aí?
- Xeretando! Você não disse que era curiosa quando tinha minha idade? Pois é... também sou!
- Mas eu era mais educada... onde já se viu mexer no que não se conhece?
- Ah! Mãe! Você acha que esse negócio é difícil?? (no meu tempo era - pensei) Mas é a maior moleza!
Internet?... o que era?
- Há 20 anos, era a coisa mais sofisticada em computação; o equivalente hoje ao Galaxy, só que bem mais lento. As pessoas podiam se comunicar, mesmo estando muito longe uma das outras - a gente costumava dizer que ela encurtava as distâncias - igualzinho ao Galaxy! Podíamos acessar bibliotecas para trabalhos da escola, falar com os amigos que estavam fazendo intercâmbio em outros países e, lógico, conhecer muita gente nova e interessante. Ainda existe por aí, mas só é usada pelos antigos saudosistas. Era muito caro na época, hoje não custa mais nada.
- E como funcionava?
- Veja... vou mostrar. 

Apesar de muito antigo, o computador estava em excelentes condições. Meus pais ainda usavam o telefone e assim eu pude configurar uma ligação genérica via modem. Minha filha ria de rolar pela lentidão em que as coisas aconteciam. 

- Mãe, já estamos há quase 3 minutos e ainda não aconteceu nada...
- Peraí... tenha paciência...
Conectei com um provedor de linha e reativei os comandos da minha antiga caixa postal.
- Pronto! Mandávamos mensagens assim.
- Você escrevia com o teclado? Os dedos não doíam?
- Até podiam doer, mas foi assim que eu conheci aquele editor americano....
- Que nomes estranhos...
- Era assim que as pessoas se chamavam na Internet, por apelidos; e a gente digitava...
- Digi o quê?
- Digitava... usava essa teclas com letras e números... a gente digitava um endereço... olha só... assim: gb@vol.com.br, escrevia a mensagem...”Oieeee! Há quanto tempo!!!!” e usava o mouse para clicar em enviar e receber e pronto, veja só!!!!
- Ahahahahahahahahaha! Que lerdeza!
- Mas agora vamos dormir que já é tarde...
- Ah! Mãe! Eu queria ver mais...
- Deixe para amanhã. Pode deixar tudo ligado, que assim que você acordar é só ir mexendo...
- Tá bom! Tá bom!

Deixei Priti na cama e fui tomar um copo d’água.

Casa antiga, sem automação, a gente anda quilômetros. De repente ouço um “pin”... Pin??? Fui até o computador já pronta para dar uma bronca quando vejo, na tela, o desenho de um envelope... ”Meu Deus!” pensei... Chegou um e-mail??? “MAIS DE 20 ANOS” era o que estava escrito.

Assustada, desliguei tudo. Só podia ser sonho. Preferi dormir. Já no quarto, vesti minha camisola azul - largara o rosa, minha cor preferida, há muito tempo - e me deitei naquela cama que por muito tempo tinha sido minha; tantas lembranças do meu tempo no Brasil. Este lugar tinha um toque mágico que fazia com que coisas emergissem na minha memória. Com o corpo cansado da viagem, fechei os olhos, mas minha mente não conseguia parar de processar lembranças e a imagem daquele envelope piscando não me deixava em paz. Revirei-me na cama, levantei, tomei outro copo d’água, olhei mais uma vez aquela tela de computador, agora desligada. Mas será possível? Imagina, em pleno ano de 2020, ele não teria mais Internet. 

Mas então quem teria respondido o e-mail? Nossa, tanto tempo se passou, mas eu jamais esqueci daquele homem que mudou tanto a minha vida e sem o qual jamais estaria aqui. Lembro perfeitamente de quando nos conhecemos: eu acabara de chegar da escola e nem tinha almoçado direito, doida para passear na Internet, que era novidade na minha casa. Entrei em um chat de um provedor (era assim que a gente chamava) e achei o apelido dele muito curioso. Aliás era esse mesmo o apelido -“Curi0s0” - só que com dois zeros. Depois vim a saber que ele se chamava Guido. Dei um “oi” e ele respondeu. Perguntei a idade e ele devolveu: -“Faz diferença?” Eu disse que não e aí veio a bomba: “- 38 anos!” Imagina eu, uma menininha de 13 anos batendo papo na Internet com um cara de 38 anos! Pra mim era o máximo! E quando ele falou que era médico? Achei que ele estava era rindo da minha cara pois eram duas horas da tarde e um médico trabalha o dia todo, achava. Ele me deu a maior bronca quando eu disse para todos verem que ele era um mentiroso e coisa e tal. Me desculpei e ele me deu o e-mail. Escrevi para ele e ele me mandou um texto maravilhoso sobre o tempo. Boas lembranças! 

Mas é melhor tirar essas coisas da minha cabeça, vinte anos é muito tempo e com certeza foi apenas uma coincidência dessas com as quais a gente se depara todos os dias. Levantei e apaguei a luz.


 Eu sou doc

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