Capítulo 2 - O contato


Priti acordou tarde e nem tocou no assunto. “Ainda bem!” - pensei. Já o Rô, saiu cedo com os avós – sempre acordou cedo - doido para conhecer a cidade que eu tanto falava enquanto estávamos na Índia.

A noite não foi uma das melhores noites da minha vida. Apesar de estar em um porto seguro, tive um sono agitado, meu corpo, cansado da viagem, queria descansar, mas minha cabeça não parou um minuto, principalmente por causa da cena vista horas antes. Acordei e fui terminar a arrumação das malas nos armários quando...
 
- Manhêeee!!!!! Tá tudo desligado aqui. Vou ligar o computador de novo!
- Tudo bem filha, pode ligar. Mas vê se vai com calma com isto aí.
- Nossa, olha o que eu achei aqui?!?! Um livro que eu li na 1 a . série -”O Mundo de Sofia” - mas tem uma dedicatória assinada por um tal de Guido! Quem era esse sujeito?
- Um amigo que conheci na Internet...
- Sei! Na certa um namorado...
- Nada disso... ele é SÓ 25 anos mais velho que eu... podia ser seu avô.
- E como ele era?
- Só conheci pelos e-mails, por fotos e filmes; pessoalmente nunca. Tenho algumas fotos por aí.
- Nunca?? E por que?
- É uma longa história...
- O que significa: “Mais de 20 anos”?
 
 Senti um frio na espinha. Ela já estava lendo o e-mail causador do “pin” da noite anterior.

- Sabe aquele e-mail que digitamos ontem? Era para este meu amigo. E depois apareceu este outro.
- Então ele respondeu?
- Isso é impossível. Ele era muito bom em informática e dificilmente manteria um e-mail por tanto tempo.
- Tente de novo, mãe... quem sabe algo acontece?

Protelei um instante, mas Priti estava tão ansiosa e com seus olhinhos pedintes voltados na minha direção, que acabei digitando de novo aquele endereço - velho conhecido - e mandei uma mensagem em branco. Talvez só pela insistência da minha filha, encantada com aquela história toda, ou por uma sensação dentro de mim que queria partilhar desta esperança.

Um minuto... Nenhuma resposta.

Dois minutos... O computador estava na mesma.

“- Deve ter sido coincidência mesmo. Vou esperar mais um minuto, se nada acontecer, desisto”.

Três minutos... “- É, pelo visto foi só...”

- Mãe... fez um “pin”

Meu coração acelerou como no meu primeiro dia de internauta. Meus olhos custavam a acreditar naquela envelope piscando na tela. Não conseguia entender direito o que estava acontecendo; um lado de mim insistia em dizer que era só coincidência, deveria ser alguém que estava com este endereço eletrônico... Mas o outro lado me dizia que só podia ser ele, tinha que ser. E foi, com certeza, este e-mail que quase me fez cair dura no chão. Respirei fundo, tomei coragem e abri o envelope.

”- Só manda mensagem em branco? Escreva alguma coisa. Que tal escrever seu nome?”

Antes que eu pudesse fazer alguma coisa, Priti já tinha repetido meus passos e escrito o nome dela. 

"- Sou Priti... e você quem é?”

Enviar e receber...

- Deixe isso pra lá! - Me levantei não querendo mais acreditar naquela possibilidade e já ia saindo do quarto quando...

”PIN”

- Mãe, ele respondeu: ”- Já fui um anjo... agora sou só um velho. Pensei que fosse outra pessoa.”
- Que pessoa? - mandou novamente (Fico impressionada com a velocidade que as crianças aprendem as coisas)...

”PIN”

-“Eu a chamava de BELA”.
- Mãeeeeee!!!!!! É o seu amigo!!!!!!!!!!!!
- Como é que é?? - Agora sim meu coração estava quase saindo pela boca.
- Seu amigo, o tal “Guido=Curi0s0”...

Meu coração começou a bater, igualzinho ao dia da formatura de 8a . série. Fui tomada de um impulso que quase derrubou a Pri da cadeira.

- Deixa eu sentar aí! Deixa eu sentar aí! – gritei!
- Calma, mãe, peraí!
- Clica ali, digita outro e-mail... diga que sou eu mesma, que quero falar com ele. Vamos escreve logo... Ah!tem um jeito mais rápido. Vamos acionar o ESV.
- ESV? O que é isso?
- É aquela estrelinha ali... Era um programa de mensagens que funcionava mais rápido, ou menos devagar pra você. Será que ainda funciona?

Priti clicou na estrela. Quase que imediatamente a tela piscou e veio a fatídica mensagem:

“Este programa ocasionou um erro ilegal e será desligado”.

- Mãe o que é isso? Ilegal? É coisa de polícia?? Meu Deus!

E a tela ficou preta...

- E agora mãe?
- Calma filha! O computador vai reiniciar e a gente começa tudo de novo. O ilegal não tem nada a ver com polícia, é só uma tradução mal feita do programa original em inglês. Ou seja, um programa que atrapalha o funcionamento do computador todo.
- Mas sem essa de estrelinha, tá bom?
- É que o computador tinha pouca memória.
- Memória?? Ah! Essas coisas antiquadas...
- Pronto, está abrindo.

Na tela lia-se “MODO SEGURO”

- Ah, não! Era o que me faltava!
- O que foi, mãe!
- Quando dava essa encrenca tinha que reinstalaro programa.
- Então vamos reinstalar...
- Sim, mas faltam os disquetes que eu não tenho a menor ideia por onde andam. Seu tio é que era bom nisso, eu era amadora. O jeito é esquecer e deixar pra lá mesmo. Não vamos achar estes disquetes. Mesmo que encontremos, eu não saberei usar e além disto é loucura imaginar que aquela pessoa era mesmo o meu amigo.

Tentei esconder minha decepção; a minha vontade era de chorar, gritar, voltar no tempo e nunca ter clicado naquela estrelinha brilhante no alto da tela. Mania burra esta de querer acelerar as coisas, talvez por causa dela eu perca a chance de conversar com ele. Depois de tanto tempo, não consigo acreditar.

- Nossa, mamãe! Não estou te reconhecendo! É lógico que era ele. Quem mais no mundo saberia o seu nome?
- Minha filha, você nem imagina a quantidade de garotas que usam este nome por aí...
- Mãe, não acredito! Você não pode desistir agora, não é?
- Muito bem, geniazinha, então dê a solução! - ela adorava computadores pois, na Índia, essa tecnologia sempre foi muito avançada – e, pelo visto, estava realmente animada com a possibilidade de viver uma aventura, e melhor, pelo meu passado.
- É fácil... Biblioteca da cidade! Vamos até lá!

A biblioteca ficava no centro da cidade - o que significava 4 quadras da casa da minha mãe - e fomos a pé. Era uma construção antiga, toda feita em tijolos e, mesmo com o passar dos anos, ainda conservavam a cor muito vermelha. O pé direito era tão alto que, quando você entrava nela, dava até um certo medo - parecia que o teto jamais chegaria e não chegava mesmo - tamanha era a quantidade de livros naquelas estantes. As portas, então, imensas e de um ébano quase negro, ficavam no centro, imponentes. Ela sempre foi este charme! Lembro da minha avó contando como eram os jardins da biblioteca no tempo dela, com lírios amarelos e muita folhagem verde em volta, além de pequenas árvores... Ela devia estar aqui pra ver como tudo continua igualzinho! É impressionante, o tempo passa, o conhecimento muda, hoje você já pode ter acesso a tudo aquilo que está encerrado nestas paredes, na rapidez do pensamento, principalmente com o Galaxy, mas as bibliotecas continuam aí: paredes cobertas de livros, de um saber que nunca morre. Acho que é por isto que elas ainda sobrevivem, recheadas de um saber eterno que dá vida àquelas paredes vermelhas. Fiz muitas pesquisas para a escola nesta biblioteca. Quem orientava as buscas dos livros era aquela senhora de óculos fininhos, cabelos tão brancos que mais pareciam nuvens: a Dona Cotinha. Além disso - e com muita simpatia - contava as novidades do mundo da literatura e sempre tinha um poema diferente, registrado na mente, prontinho pra nos recitar.

Entramos e Priti foi logo dominando a situação. De cara, um computador havia substituído a Dona Cotinha. Priti foi lá, mexeu nos comandos, pediu o que procurava e recebeu a informação.

- Está na quarta fileira...
- O que está na quarta fileira?
- Você verá...

Mais do que depressa, ela procurou e encontrou o que achava ser a solução. Velhos disquetes de computador, mas em bom estado, onde se lia: “Programa Geral de Instalação com corretor de erros - válido para qualquer plataforma”.

- De onde você tirou essa pérola?
- Das minhas aulas do curso primário. Foi na visita a um museu virtual. Eles comentaram muito rápido sobre as velharias e os problemas que causavam e as soluções. Eu só lembrei da aula e vim procurar. Vamos, vamos, também estou “curi0sa”!

Voltamos pra casa, mas já era hora do almoço e minha mãe fez questão que almoçássemos de uma vez. Meu pai havia ido com Darshan até a cidade vizinha, para cuidar de alguns negócios, e minha mãe fez um prato italiano que eu gostava muito: rondelli de ricota. Estava mais calma agora. Acho que, na verdade, tentava ser realista. Minha filha estava ansiosa para aquele almoço terminar, para poder voltar ao computador. Esperava que ela conseguisse mesmo dar um jeito naquela velharia e que restabelecesse o contato, porque não sei quem ficaria mais desapontada se ela não conseguisse o intento. Nem tocamos no assunto com a minha mãe, para não aborrecê-la com lembranças. Quantas broncas levei por ficar mais tempo na Internet do que fazendo outra coisa. E as contas de telefone? Caríssimas! E a confusão da vinda dele aqui?

Comemos rápido e, sutilmente, dispensamos a sobremesa. Fiquei na sala distraindo minha mãe enquanto Priti tentava consertar o programa. Parecia coisa de adolescente mesmo, pensei. Uma enrola a mãe e a outra faz a arte!

Lá pelas tantas ouvi um “pin”. Sugeri para a minha mãe um doce especial para o jantar e, enquanto ela saiu para comprar os ingredientes, me juntei a minha filha.

- Pronto, resolvi e ele já respondeu. Ele mora no interior do Rio de Janeiro, numa cidade chamada Ribeirão Florido e está mandando um convite para visitá-lo, dizendo que está com saudades de você e que os e-mails não são suficientes, depois de tantos anos. Viria aqui, mas não quer recriar confusões. Que confusões, mãe?

Não conseguia esconder a alegria de ter certeza de que era ele. Sorri feito criança com o brinquedo novo. Acho que até fiquei com os olhos mareados. Minha perna estava mole. Imagina, depois desses anos todos, descobrir que ele ainda estava lá e, melhor ainda, queria me ver! Era emoção demais.

- Mãe, acorda, eu perguntei que confusões!?
- Ah é... calma você também, né (encurtar o “não é” foi um cacoete que ele tinha e que acabei incorporando)?! É que, uma vez, ele quase veio aqui me visitar, mas seu avô não deixou.
- Mas por que não deixou?
- Achava que ele era mal intencionado e que poderia me fazer algum mal.
- E o que você fez?
- Fiquei muito chateada com a situação. A gente já se falava há um ano e estávamos planejando o encontro há mais de três meses. Ia ser na formatura da oitava série em 1999.
- Nossa! Quanto tempo! Que chato isto ter acontecido.
- Eu jamais imaginei que isso fosse acontecer. Achei que ia ser uma surpresa, que ia dar uma confusãozinha, seus avós iam ficar meio doidos, mas depois tudo ia dar certo. Na minha cabeça de adolescente não tinha como alguém não gostar dele, aliás ainda acho isto.
- Mas por que você contou antes? Não ia ser uma surpresa?
- Ele pediu. Achou que era mais conveniente e correto. Ele era muito educado. E ainda deve ser.
- E aí, como vocês resolveram?
- Nós conversamos e achamos melhor respeitar a opinião do seu avô. Na verdade não foi bem uma opinião, foi uma imposição.

Fiquei um pouco na dúvida se deveria passar esse ressentimento para a Priti... Mas por que esconder?

- Mas ele não era mau caráter, ou era?
- Claro que não... mas como convencer? Era um tempo muito violento e eu só tinha, nessa época, 14 anos. E ele 39. Além do mais, seu avô sempre teve um temperamento forte. Minha criação foi completamente diferente da sua. Muitas coisas que você pode fazer hoje, eu nem sonhava fazer naquela época. Até pra conversar com eles era difícil e eu me senti impotente diante daquela situação. Na verdade, me senti muito mal mesmo. Queria muito conhecer meu amigo, mas também não podia contrariar meus pais. Acabei acatando a decisão do seu avô, mas sofri bastante com isso. Espero que ele tenha entendido, ele sempre foi um homem muito compreensivo. Em compensação aqui em casa o clima ficou tenso, apesar de nunca mais ter ouvido uma palavra sequer sobre este assunto.
- E aí? O que aconteceu depois?
- Passamos a trocar menos e-mails. Um dia, assim, do nada, ele parou de me escrever. Mandei vários e-mails e nada. Tentei ligar mas não consegui. Um dia, ainda nas férias de janeiro de 2000, recebi um e-mail dele dizendo que ia parar os contatos, mas que escreveria uma carta depois, explicando melhor. Fiquei esperando. Nunca recebi nada. E aí fui para a Índia!
- Por causa dele?
- Claro que não. Eu fui pra Índia e pronto.

Foram tantos os motivos que me mandaram para a Índia... Acho que a proibição dos meus pais foi a gota d’água para mim; não conseguiria esperar até completar 18 anos, entrar para uma faculdade e ter um pouco mais da liberdade que a maioridade acaba nos dando. Afinal eu só era uma garotinha e ainda dependia deles. Aquele tempo na Índia, foi, a princípio, para eu refrescar a cabeça e tentar ter disposição pra voltar àquela vidinha onde meus pais impunham as coisas e eu acatava por não ter outra opção. Ficar lá foi a solução. Mas prefiro não contar essa história para Priti, pelo menos não agora.

- Só? Então por que você foi pra Índia?
- Mais tarde eu conto mais alguns detalhes. Agora mande outro e-mail. Diga que vou!

Eu sou doc

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